domingo, 26 de abril de 2015

Breves Considerações sobre a obra de Boaventura de Sousa Santos: Direitos humanos, democracia e desenvolvimento.

Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento
Boaventura de Sousa Santos
Marilena Chaui

Para o autor existem pelo menos 5 concepções equivocadas de DH:

- Primeira Ilusão, Teleológica: Se faz a leitura do passado a partir do presente, de forma linear e determinista, desconsiderando as contingências. "A escolha dos precursores é crucial a esse respeito" (p. 45);

- Segunda Ilusão, Triunfalista: Sustenta a ideia que a vitória dos direitos humanos é um bem humano incondicional, desconsiderando as outras formas de dignidade, consideradas como inferiores política e eticamente. A hegemonia dos direitos humanos se pode ser considerada uma vitória se for possível provas que ela é verdadeiramente emancipadora, e não simplesmente pelo fato de terem sido vencedores.

- Terceira Ilusão, Descontextualização: Com essa expressão Boaventura está indicando o processo de uso dos direitos humanos como arma política em contextos diferentes e produzindo contradições. No século XIX o discurso dos direitos humanos se separou de seu elemento revolucionário caindo em uma forma de despolitização. É o momento que o discurso de direitos humanos é subsumido ao direito do Estado, e o Estado assumiu o monopólio da produção do direito e da administração. O papel da conceito da dignidade humana consoante políticas liberais. O discurso de direitos humanos significou coisas muito diferentes em diferentes contextos históricos e tanto legitimou práticas revolucionárias como práticas contrarrevolucionárias.
- Quarta Ilusão, Monolitismo: Segundo Boaventura o discurso tradicional dos direitos humanos busca negar ou minimizar as tensões e até mesmo as contradições internas das teorias dos direitos humanos. O autor ilustra essa questão com o uso das expressões direito do homem e do cidadão, que traz em si essa dualidade de tratamento.
- Quinta Ilusão, Antiestatismo: Após fazer um histórico do nascimento dos direitos de abstenção e de intervenção do Estado, o autor lança crítica para forma colonizada dos princípio de Estado e de comunidade pelas forças econômicas, de mercado, eximindo os agentes econômicos do cumprimento de respeito aos direitos humanos cuja violação atinge de forma massiva os trabalhadores, migrantes, pensionistas e estudantes.
* Refletir sobre essas cinco ilusões é importante para uma tentativa de construir uma concepção e uma prática contra-hegemônica de direitos humanos. Esse trabalho político e acadêmico se assenta em dois pilares: o trabalho politico dos movimentos e organizações sociais, que lutam por uma sociedade mais justa e mais digna. É sob esse signo, dos movimentos sociais, que é possível formular uma gramática de direitos humanos que seja emancipadora. O outro trabalho é teórico de construção de alternativa dos direitos humanos. Isso é possível atacando o consenso que os direitos humanos gozam, desmascarando suas ambiguidades. Segundo o autor “o trabalho teórico visa precisamente desestabilizar esse consenso”.


Definição pelo autor de versão hegemônica ou convencional dos direitos humanos:
- Segundo ele, o conceito tradicional dos direitos humanos carrega as seguintes características:
a) São direitos universalmente válidos, independentemente do contexto social, político e cultural em que operam e dos diferentes regimes de direitos humanos existentes em diferentes regiões do mundo;
b) Parte de uma natureza humana como sendo individual, autossustentada e qualitativamente da natureza não humana;
c) O que conta como violação dos direitos humanos é definido pelas declarações universais, instituições multilaterais (tribunais e comissões) e organizações internacionais (Norte);
d) Duplos critérios e permanência do caráter universal;
e) O respeito é mais problemático no Sul Global do que no Norte Global.

Limites dessa concepção: Se a humanidade é uma só, e se há uma só concepção validade de dignidade humana, por que há tantos princípios sobre a dignidade humana e de justiça social?[1] Sublinha o autor que a compreensão do mundo excede em muito a compreensão ocidental do mundo.
- Boaventura faz uma importante observação: O postulado da universalidade, de certa forma mascararia os pressuposto ocidentais presente nesse concepção de direitos humanos. Assim se expressa o autor: “ O fato dessa concepção ser baseada em pressupostos ocidentais é considerado irrelevante, já que o postulado da universalidade faz com que a historicidade dos direitos humanos não interfira com o seu estatuto ontológico” (p. 55).
- Essa postura em defesa da universalidade, carregada por pressuposto ocidentais, traz consigo uma visão que tem como irrelevante, trivial e obscurecida, as experiências culturais e políticas dos países do Sul. No dizer do autor: “ Esses movimentos não formulam suas demandas em termos de direitos humanos, e, pelo contrário, frequentemente formulam-nas de acordo com princípios que contradizem os princípios dominantes dos direitos humanos” (p. 55,56). Três movimentos sociais são citados pelo autor: 1) Movimentos Indígenas (América Latina); 2) Movimentos de Camponeses na África; c) Insurgência Islâmica.  Segundo o autor a visão convencional de direitos humanos ignoram esses movimentos e suas possíveis contribuições.

- Para uma reconstrução teórica dos direitos humanos, o autor passa em revista uma série de tensões que atravessam hoje as lutas políticas construídas por referência aos direitos humanos:

2. AS TENSÕES NOS DIREITOS HUMANOS

2.1- A Tensão entre o Universal e o Fundacional.
- Distinção entre Universal e Fundacional: O primeiro corresponde àquela categoria que tem validade em todos os tempos e lugares, sendo representativo pela sua extensividade. O segundo corresponde àquilo que tem importância por ser único. É representativo pela intensidade. Para Boaventura, as duas categorias produzem exclusão, e definem a tensão entre o princípio da igualdade e o princípio do reconhecimento da diferença, e ainda da tensão entre desenvolvimento e autodeterminação. Para o autor, existe uma cumplicidade entre as duas categorias, pois o que é considerado universal hoje é o fundacional do ocidente transformado em universal. Portanto, o universal é o produto da transformação histórica do fundacional eurocêntrico, ocidental, e por isso os princípios fundacionais de outras culturas aparecem para nós como particularizados no processo histórico, nesse mesmo processo histórico que permitiu ao particularismo do ocidente universalizar-se. O momento atual representa a emergência de concepções alternativas de valores últimos, válidos em outros contextos culturais. Diz o autor: “Não se trata de universalismos rivais mas de particularismos rivais, diferenças profundas na definição de emancipação, de libertação e de dignidade, e de tipos de lutas para os alcançar. Saída: para essa situação de sociedade monodais o autor indica a possibilidade de uma tradução intercultural. Ainda no plano de uma saída, da superação da dicotomia universal/fundacional, Boaventura aponta para a busca de um cosmopolitismo subalterno, construído a partir de baixo, das trocas de experiência e de articulação de lutas entre movimentos e organizações de excluídos e seus aliados de várias partes do mundo.

2.2 – A Tensão entre Direitos Individuais e Direitos Coletivos.

- Nesse contexto o autor levanta a questão do reconhecimento apenas de dois sujeitos de direito no plano da Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas: o indivíduo e o Estado. Isso contrasta com a realidade de que muitos indivíduos se encontram dentro de grupos que não eram Estados, mas nações e povos diversos. Essa submissão dos indivíduos a dominação coletiva foi ignorada pela Declaração, pois nessas condições eram impossíveis a igualdade individual. Também ignorou o sexismo e o colonialismo, que somente em momentos posteriores foram consideradas como violações aos direitos humanos. A autodeterminação proposta tinha a limitação de ser considerada apenas para os povos sujeitos ao colonialismo europeu, ignorando o colonialismo interno. Cabe destacar a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), e Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho em 1989, que o Brasil ratificou entre 1991.

2.3- A Tensão entre o Estado e o Anti-Estado.

- O autor ressalta a origem dos chamados gerações de direitos humanos (Thomas H. Marshall)[2], sem esquecer a contradição implicada nessa noção, com as diversas etapas dos desenvolvimentos dos direitos humanos, ora como expressão de oposição ao Estado, limitando sua capacidade interventiva e restritiva de direitos individuais (direitos de cunho abstencionista) e de expressão de convocação do Estado para prestação da atividade de dispor de meios para realização de direitos, através dos excedentes captados pelo Estado através de impostos e de outras fontes de receita. Esse processo dinâmico leva a formação de estruturas de Estados que assumem determinadas demandas a ponto de merecerem as denominações usadas pelo autor, tais como a “passagem do Estado liberal ou de direito” para “Estado social de direito”, para o Estado do bem-estar” no Norte global ou para o “Estado desenvolvimentista” ou “neodesenvolvimentista” do Sul global. Merece menção o que o autor discorre sobre a questão da indivisibilidade dos direitos humanos, o que significa que “só o reconhecimento dos diferentes tipos de direitos humanos garante o respeito de qualquer um deles individualmente” (p. 66). O autor exemplifica essa questão com o exemplo da América Latina e a União Europeia, onde na primeira se promoveu o respeito aos direitos civis e políticos ao se ampliar significativamente os direitos sociais e econômicos de vastas camadas da população, com o reforço da democracia. Já na União Europeia houve um verdadeiro retrocesso a limitação dos direitos econômicos e sociais representou o sequestro da democracia pelo capital financeiro. O autor não deixa de criticar o princípio da indivisibilidade vige mais no plano teórico que prático, fazendo também um desdobramento da questão da oposição ao Estado no período oitocentista e no período da década de 80, com a emergência do neoliberalismo que prega o desmantelamento do Estado, inclusive com a transferência do trabalho do deste último para ONG’s, inclusive com o apoio vindo da advocacia internacional dos direitos humanos que ressaltam a tese dos Estados falhados.
Obs: O autor destaca no início dessa seção que a centralidade do Estado pode desviar a atenção das grandes violações dos direitos humanos que são hoje em dia cometidas por poderosos agentes não estatais (p.64)[3].

2.4- A Tensão entre Secularismo e Pós-Secularismo.
- A solução para os conflitos religiosos na resposta ocidental foi a transferência dela dimensão religiosa para a esfera privada, dessa forma mantendo livre a vida pública das intervenções religiosas. Mas como destaca Boaventura, essa condição nunca foi satisfatoriamente realizada. Mas pode-se afirma que vivemos um período de pós-secularismo (Charles Tilly, 1975).

2.5- A Tensão entre Direitos Humanos e Deveres Humanos.

- Na gramática dos direitos humanos do Ocidente a questão dos deveres foi ignorada, dando relevância e importância mais aos direitos. Está orientação está fundada em uma imaginária simetria entre direitos e deveres. Em uma perspectiva de tradução intercultural entre gramaticas de dignidade humana e de libertação essa assimetria (direitos e deveres) não pode ser desconsideradas, e para tanto deve-se pautar uma arqueologia de cada uma das gramáticas, que no exemplo entre Cristianismo e Islã tem proximidades a imolação, aparecendo a distinção entre suicídio e martírio.

2.6- A Tensão entre a Razão de Estado e a Razão de Direitos.

- Essa tensão pode ser explicada como o processo de continuidade dos direitos humanos e de descontinuidades dos regimes políticos. É o campo específico dos crimes contra a humanidades levados a cabo pelos regimes ditatoriais, da tensão entre anistia e não anistia, entre “aqueles que não podem esquecer e aqueles que não querem lembrar” (p. 71). O autor faz longas considerações sobre o trabalho de estabelecimentos de mecanismo de Justiça Transacional, como a Comissão da Verdade, as Caravanas de Anistia, as Clínicas do Testemunho, a Lei de Acesso à Informação, tudo isso no marco de uma Justiça de Transição, buscando a reparação histórica, moral, econômica, do direito à verdade e à memória, do reconhecimento de injustiças e os respectivos pedidos de desculpas a coletivos injustiçados.
2.7- A Tensão entre o Humano e o Não Humano.
- Nesse âmbito o autor destaca duas dimensões. A primeira corresponde a situação de seres que possuem fenótipos humanos mas não é considerado humano (“deficiência originária da humanidade), sendo a escravidão o que melhor ilustra essa dimensão. Segundo o autor, os direitos humanos de expressão de dimensão se utilizar da linha abissal entre quem é verdadeiramente humano, e possui esse direito, e quem não é humanos, não se lhe aplicando os direitos humanos. A segunda dimensão corresponde ao reconhecimento, ou não, de um outro sujeito de direitos humanos, a própria natureza, cuja importância pode ser testada pela inclusão dessa como titular de direito tanto na Constituição do Equador (2008), como no direito boliviano, pela Lei Marco da Terra Mãe e Desenvolvimento Integral para Viver Bem (2009).
2.8- A Tensão entre o Reconhecimento da Igualdade e o Reconhecimento da Diferença.

- É sob o princípio da igualdade que se assenta a pretensão universalista dos direitos humanos eurocêntricos, mas com um viés caracterizado pela isonomia formal, não substantiva.  Mesmo a luta pela redução da desigualdade material só veio mais tarde, e mesmo assim sob o paradigma do princípio da igualdade, que de certa forma nivela, não fazendo casos das diferenças, e portanto, discrimina e excluir. O questionamento desse paradigma pelos grupos sociais discriminados e excluídos põem em causa os critérios que leva a formulação do princípio da igualdade e da diferença, bem como os diferentes tipo de inclusão e exclusão. Segundo Boaventura, a ideia do fundacional/identitário passou a concorrer com a ideia do universal/igualitário, o que levou a superação do conceito de luta em favor da integração e assimilação à cultura dominante para ser um luta pelo reconhecimento da diferença. Segundo Boaventura: “temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza e temos o direito de ser diferentes quando a igualdade nos trivializa” (p. 79). Segundo o autor, o Brasil “aposta em considerar a justiça histórica e cultural como parte integrante da justiça social” (p.80). Duas são as amostras desses indicadores de transformação na experiência brasileira, a saber: 1) A introdução de políticas afirmativas e de sistemas de quotas; 2) O trabalho do Conselho Nacional de Educação para combater o racismo estruturado no ensino e na educação brasileira, incentivando uma educação antirracista. Ressalta ainda os pareceres do CNE para a educação indígena e para a educação escolar quilombola, bem como os pareceres do CNE para a educação em direitos humanos e para educação ambiental.

2.9- Tensão entre o direito ao desenvolvimento e outros direitos humanos individuais e coletivos, nomeadamente o direito à autodeterminação, o direito a um ambiente saudável, o direito à terra e o direito à saúde.

- Para Santos essa forma de tensão compreende muitas matizes. Mas o autor destaca pelo menos três: a) tensão relativa ao direito à saúde e aos direitos ambientais em geral; b) tensão relativa à autodeterminação dos povos; c) tensão relativa ao direitos dos povos de se libertarem do neocolonialismo.
-  O direito ao desenvolvimento passou a ser um dever ao desenvolvimento, em uma versão neoliberal, onde qualquer alternativa foi combatida, especialmente o Movimento Nova Ordem Econômica Internacional, com a imposição de normas pelo Consenso de Washington (garantido pelo FMI, Banco Mundial e OMC). O auto ressalta que o direito ao desenvolvimento foi formulado em cima do conceito de troca desiguais no mercado internacional proposta pela teoria da dependência. Uma troca desigual condenava os países os países do Terceiro Mundo a exportar matérias-primas cujos preços eram fixados pelos países que delas precisavam, e não pelos países que as exportavam. Foi sob esse conceito de desenvolvimento que países dos Terceiro mundo, especialmente os africanos basearam para reivindicar um direito ao desenvolvimento como se vê na Declaração sobre o Progresso Social e o Desenvolvimento (1969), a Declaração do Direito ao Desenvolvimento das Nações Unidas em 1986.
- No século XXI esse desenvolvimento apresenta as seguintes características: 1) A reivindicação do direito ao desenvolvimento se tornou mais complexa; 2) O desenvolvimento capitalista pressiona os limites dos recursos naturais (mudanças climáticas). A acumulação das crises torna todas uma única crise, que pode ser chamada de crise civilizatória, pois tudo está ligado, a crise alimentar, a crise ambiental, a crise energética, a especulação financeira sobre as commodities, e recursos naturais, a grilagem e a concentração de terra, a expansão desordenada da fronteira agrícola, a voracidade da exploração dos recursos naturais, a escassez de água potável e a privatização da água, etc.; 3) A chegada ao poder de governos progressistas, que criou condições de melhorias da maioria das populações, com algumas características em comum, apesar de importantes diferenças. O aumento significativo da classe média brasileira é apontado como exemplo dessa mudança apoiado em um processo de redistribuição de renda através de politicas compensatórias de grande dimensão. À essa primeira características assoma-se a segunda, recuperação da centralidade do Estado na partilha do excedente econômico criado e na direção dos parâmetros macroeconômicos e financeiros. No caso da Venezuela e da Bolívia as regras de repartição do excedente foram tão profundas, que se fala até em um novo regime de acumulação, mais nacionalista e estatista, neodesenvolvimentismo, tendo como base o neoextrativismo.
- O autor destaca os impactos ambientais que essa forma de desenvolvimento pode trazer, na deterioração e depleção dos recursos naturais, que são consumidos sempre numa dimensão da temporalidade curta, sem incorporação de um horizonte temporal mais dilatado. Dessa forma, a vontade de exercitar a indivisibilidade dos direitos humanos acaba por gerar uma incompatibilidade entre eles. O incremento dos direitos econômicos e sócias acaba por vulnerabilizar  direito ao meio ambiente e a saúde.      



[1] No fundo, essa questão trazida por Boaventura não é nova, e alguns autores como Otfried Höffe assinala uma réplica dizendo que universalidade não é uniformidade. 

[2] Thomas Marshall, Citizenship and Social Class, 1950.
[3] Talvez o autor não queira tocar na espinhosa e embaraçosa questão de que historicamente foram os Estados os maiores violadores desse direitos, especialmente nas regiões do Estados do socialismo real.