Direitos
Humanos, Democracia e Desenvolvimento
Boaventura
de Sousa Santos
Marilena
Chaui
Para o
autor existem pelo menos 5 concepções equivocadas de DH:
-
Primeira Ilusão, Teleológica: Se faz
a leitura do passado a partir do presente, de forma linear e determinista,
desconsiderando as contingências. "A escolha dos precursores é crucial a
esse respeito" (p. 45);
- Segunda Ilusão, Triunfalista:
Sustenta a ideia que a vitória dos direitos humanos é um bem humano
incondicional, desconsiderando as outras formas de dignidade, consideradas como
inferiores política e eticamente. A hegemonia dos direitos humanos se pode ser
considerada uma vitória se for possível provas que ela é verdadeiramente
emancipadora, e não simplesmente pelo fato de terem sido vencedores.
- Terceira Ilusão, Descontextualização: Com essa expressão
Boaventura está indicando o processo de uso dos direitos humanos como arma
política em contextos diferentes e produzindo contradições. No século XIX o
discurso dos direitos humanos se separou de seu elemento revolucionário caindo
em uma forma de despolitização. É o momento que o discurso de direitos humanos
é subsumido ao direito do Estado, e o Estado assumiu o monopólio da produção do
direito e da administração. O papel da conceito da dignidade humana consoante
políticas liberais. O discurso de
direitos humanos significou coisas muito diferentes em diferentes contextos
históricos e tanto legitimou práticas revolucionárias como práticas
contrarrevolucionárias.
-
Quarta Ilusão, Monolitismo: Segundo Boaventura
o discurso tradicional dos direitos humanos busca negar ou minimizar as tensões
e até mesmo as contradições internas das teorias dos direitos humanos. O autor
ilustra essa questão com o uso das expressões direito do homem e do cidadão, que traz em si essa dualidade de
tratamento.
- Quinta Ilusão, Antiestatismo: Após fazer um histórico
do nascimento dos direitos de abstenção e de intervenção do Estado, o autor
lança crítica para forma colonizada dos princípio de Estado e de comunidade
pelas forças econômicas, de mercado, eximindo os agentes econômicos do
cumprimento de respeito aos direitos humanos cuja violação atinge de forma
massiva os trabalhadores, migrantes, pensionistas e estudantes.
* Refletir sobre essas
cinco ilusões é importante para uma tentativa de construir uma concepção e uma
prática contra-hegemônica de direitos humanos. Esse trabalho político e
acadêmico se assenta em dois pilares: o trabalho politico dos movimentos e
organizações sociais, que lutam por uma sociedade mais justa e mais digna. É
sob esse signo, dos movimentos sociais, que é possível formular uma gramática
de direitos humanos que seja emancipadora. O outro trabalho é teórico de
construção de alternativa dos direitos humanos. Isso é possível atacando o
consenso que os direitos humanos gozam, desmascarando suas ambiguidades.
Segundo o autor “o trabalho teórico visa precisamente desestabilizar esse
consenso”.
Definição pelo autor de
versão hegemônica ou convencional dos
direitos humanos:
- Segundo ele, o
conceito tradicional dos direitos humanos carrega as seguintes características:
a) São direitos
universalmente válidos, independentemente do contexto social, político e
cultural em que operam e dos diferentes regimes de direitos humanos existentes
em diferentes regiões do mundo;
b) Parte de uma
natureza humana como sendo individual, autossustentada e qualitativamente da
natureza não humana;
c) O que conta como
violação dos direitos humanos é definido pelas declarações universais,
instituições multilaterais (tribunais e comissões) e organizações
internacionais (Norte);
d) Duplos critérios e
permanência do caráter universal;
e) O respeito é mais
problemático no Sul Global do que no Norte Global.
Limites dessa
concepção: Se a humanidade é uma só, e se há uma só concepção validade de dignidade humana, por que há tantos
princípios sobre a dignidade humana e de justiça social?[1]
Sublinha o autor que a compreensão do mundo excede em muito a compreensão
ocidental do mundo.
- Boaventura faz uma
importante observação: O postulado da universalidade, de certa forma mascararia
os pressuposto ocidentais presente nesse concepção de direitos humanos. Assim
se expressa o autor: “ O fato dessa concepção ser baseada em pressupostos
ocidentais é considerado irrelevante, já que o postulado da universalidade faz
com que a historicidade dos direitos humanos não interfira com o seu estatuto
ontológico” (p. 55).
- Essa postura em
defesa da universalidade, carregada por pressuposto ocidentais, traz consigo
uma visão que tem como irrelevante, trivial e obscurecida, as experiências
culturais e políticas dos países do Sul. No dizer do autor: “ Esses movimentos
não formulam suas demandas em termos de direitos humanos, e, pelo contrário,
frequentemente formulam-nas de acordo com princípios que contradizem os
princípios dominantes dos direitos humanos” (p. 55,56). Três movimentos sociais
são citados pelo autor: 1) Movimentos Indígenas (América Latina); 2) Movimentos
de Camponeses na África; c) Insurgência Islâmica. Segundo o autor a visão convencional de
direitos humanos ignoram esses movimentos e suas possíveis contribuições.
- Para uma reconstrução
teórica dos direitos humanos, o autor passa em revista uma série de tensões que
atravessam hoje as lutas políticas construídas por referência aos direitos humanos:
2. AS TENSÕES NOS
DIREITOS HUMANOS
2.1- A Tensão entre o
Universal e o Fundacional.
- Distinção entre
Universal e Fundacional: O primeiro corresponde àquela categoria que tem
validade em todos os tempos e lugares, sendo representativo pela sua extensividade.
O segundo corresponde àquilo que tem importância por ser único. É
representativo pela intensidade. Para Boaventura, as duas categorias produzem exclusão, e definem a tensão entre o
princípio da igualdade e o princípio do reconhecimento da diferença, e ainda da
tensão entre desenvolvimento e autodeterminação. Para o autor, existe uma
cumplicidade entre as duas categorias, pois o que é considerado universal hoje
é o fundacional do ocidente transformado em universal. Portanto, o universal é
o produto da transformação histórica do fundacional eurocêntrico, ocidental, e
por isso os princípios fundacionais de outras culturas aparecem para nós como
particularizados no processo histórico, nesse mesmo processo histórico que
permitiu ao particularismo do ocidente universalizar-se. O momento atual
representa a emergência de concepções alternativas de valores últimos, válidos
em outros contextos culturais. Diz o autor: “Não se trata de universalismos
rivais mas de particularismos rivais, diferenças profundas na definição de
emancipação, de libertação e de dignidade, e de tipos de lutas para os
alcançar. Saída: para essa situação
de sociedade monodais o autor indica a possibilidade de uma tradução intercultural. Ainda no plano
de uma saída, da superação da dicotomia universal/fundacional, Boaventura
aponta para a busca de um cosmopolitismo
subalterno, construído a partir de baixo, das trocas de experiência e de
articulação de lutas entre movimentos e organizações de excluídos e seus
aliados de várias partes do mundo.
2.2 – A Tensão entre
Direitos Individuais e Direitos Coletivos.
- Nesse contexto o
autor levanta a questão do reconhecimento apenas de dois sujeitos de direito no
plano da Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas: o
indivíduo e o Estado. Isso contrasta com a realidade de que muitos indivíduos
se encontram dentro de grupos que não eram Estados, mas nações e povos
diversos. Essa submissão dos indivíduos a dominação coletiva foi ignorada pela
Declaração, pois nessas condições eram impossíveis a igualdade individual.
Também ignorou o sexismo e o colonialismo, que somente em momentos posteriores
foram consideradas como violações aos direitos humanos. A autodeterminação
proposta tinha a limitação de ser considerada apenas para os povos sujeitos ao
colonialismo europeu, ignorando o
colonialismo interno. Cabe destacar a Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Povos Indígenas (2007), e Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho em 1989, que o Brasil ratificou entre 1991.
2.3- A Tensão entre o
Estado e o Anti-Estado.
- O autor ressalta a
origem dos chamados gerações de direitos humanos (Thomas H. Marshall)[2],
sem esquecer a contradição implicada nessa noção, com as diversas etapas dos
desenvolvimentos dos direitos humanos, ora como expressão de oposição ao
Estado, limitando sua capacidade interventiva e restritiva de direitos
individuais (direitos de cunho abstencionista) e de expressão de convocação do
Estado para prestação da atividade de dispor de meios para realização de
direitos, através dos excedentes captados pelo Estado através de impostos e de
outras fontes de receita. Esse processo dinâmico leva a formação de estruturas
de Estados que assumem determinadas demandas a ponto de merecerem as
denominações usadas pelo autor, tais como a “passagem do Estado liberal ou de
direito” para “Estado social de direito”, para o Estado do bem-estar” no Norte
global ou para o “Estado desenvolvimentista” ou “neodesenvolvimentista” do Sul
global. Merece menção o que o autor discorre sobre a questão da indivisibilidade dos direitos humanos,
o que significa que “só o reconhecimento dos diferentes tipos de direitos
humanos garante o respeito de qualquer um deles individualmente” (p. 66). O
autor exemplifica essa questão com o exemplo da América Latina e a União
Europeia, onde na primeira se promoveu o respeito aos direitos civis e
políticos ao se ampliar significativamente os direitos sociais e econômicos de
vastas camadas da população, com o reforço da democracia. Já na União Europeia houve
um verdadeiro retrocesso a limitação dos direitos econômicos e sociais
representou o sequestro da democracia pelo capital financeiro. O autor não
deixa de criticar o princípio da indivisibilidade vige mais no plano teórico
que prático, fazendo também um desdobramento da questão da oposição ao Estado
no período oitocentista e no período da década de 80, com a emergência do
neoliberalismo que prega o desmantelamento do Estado, inclusive com a
transferência do trabalho do deste último para ONG’s, inclusive com o apoio
vindo da advocacia internacional dos direitos humanos que ressaltam a tese dos
Estados falhados.
Obs: O autor destaca no
início dessa seção que a centralidade do Estado pode desviar a atenção das
grandes violações dos direitos humanos que são hoje em dia cometidas por
poderosos agentes não estatais (p.64)[3].
2.4- A Tensão entre
Secularismo e Pós-Secularismo.
- A solução para os
conflitos religiosos na resposta ocidental foi a transferência dela dimensão
religiosa para a esfera privada, dessa forma mantendo livre a vida pública das
intervenções religiosas. Mas como destaca Boaventura, essa condição nunca foi
satisfatoriamente realizada. Mas pode-se afirma que vivemos um período de
pós-secularismo (Charles Tilly, 1975).
2.5- A Tensão entre
Direitos Humanos e Deveres Humanos.
- Na gramática dos
direitos humanos do Ocidente a questão dos deveres foi ignorada, dando
relevância e importância mais aos direitos. Está orientação está fundada em uma
imaginária simetria entre direitos e deveres. Em uma perspectiva de tradução
intercultural entre gramaticas de dignidade humana e de libertação essa
assimetria (direitos e deveres) não pode ser desconsideradas, e para tanto
deve-se pautar uma arqueologia de cada uma das gramáticas, que no exemplo entre
Cristianismo e Islã tem proximidades a imolação, aparecendo a distinção entre
suicídio e martírio.
2.6- A Tensão entre a
Razão de Estado e a Razão de Direitos.
- Essa tensão pode ser
explicada como o processo de continuidade dos direitos humanos e de descontinuidades
dos regimes políticos. É o campo específico dos crimes contra a humanidades levados
a cabo pelos regimes ditatoriais, da tensão entre anistia e não anistia, entre
“aqueles que não podem esquecer e aqueles que não querem lembrar” (p. 71). O autor
faz longas considerações sobre o trabalho de estabelecimentos de mecanismo de
Justiça Transacional, como a Comissão da Verdade, as Caravanas de Anistia, as
Clínicas do Testemunho, a Lei de Acesso à Informação, tudo isso no marco de uma
Justiça de Transição, buscando a reparação histórica, moral, econômica, do
direito à verdade e à memória, do reconhecimento de injustiças e os respectivos
pedidos de desculpas a coletivos injustiçados.
2.7- A Tensão entre o
Humano e o Não Humano.
- Nesse âmbito o autor
destaca duas dimensões. A primeira corresponde a situação de seres que possuem
fenótipos humanos mas não é considerado humano (“deficiência originária da
humanidade), sendo a escravidão o que melhor ilustra essa dimensão. Segundo o
autor, os direitos humanos de expressão de dimensão se utilizar da linha abissal entre quem é
verdadeiramente humano, e possui esse direito, e quem não é humanos, não se lhe
aplicando os direitos humanos. A segunda dimensão corresponde ao
reconhecimento, ou não, de um outro sujeito de direitos humanos, a própria
natureza, cuja importância pode ser testada pela inclusão dessa como titular de
direito tanto na Constituição do Equador (2008), como no direito boliviano,
pela Lei Marco da Terra Mãe e Desenvolvimento Integral para Viver Bem (2009).
2.8- A Tensão entre o
Reconhecimento da Igualdade e o Reconhecimento da Diferença.
- É sob o princípio da
igualdade que se assenta a pretensão universalista dos direitos humanos
eurocêntricos, mas com um viés caracterizado pela isonomia formal, não
substantiva. Mesmo a luta pela redução
da desigualdade material só veio mais tarde, e mesmo assim sob o paradigma do
princípio da igualdade, que de certa forma nivela, não fazendo casos das
diferenças, e portanto, discrimina e excluir. O questionamento desse paradigma
pelos grupos sociais discriminados e excluídos põem em causa os critérios que
leva a formulação do princípio da igualdade e da diferença, bem como os
diferentes tipo de inclusão e exclusão. Segundo Boaventura, a ideia do
fundacional/identitário passou a concorrer com a ideia do
universal/igualitário, o que levou a superação do conceito de luta em favor da
integração e assimilação à cultura dominante para ser um luta pelo
reconhecimento da diferença. Segundo Boaventura: “temos o direito de ser iguais
quando a diferença nos inferioriza e temos o direito de ser diferentes quando a
igualdade nos trivializa” (p. 79). Segundo o autor, o Brasil “aposta em
considerar a justiça histórica e cultural como parte integrante da justiça
social” (p.80). Duas são as amostras desses indicadores de transformação na
experiência brasileira, a saber: 1) A introdução de políticas afirmativas e de
sistemas de quotas; 2) O trabalho do Conselho Nacional de Educação para
combater o racismo estruturado no ensino e na educação brasileira, incentivando
uma educação antirracista. Ressalta ainda os pareceres do CNE para a educação
indígena e para a educação escolar quilombola, bem como os pareceres do CNE
para a educação em direitos humanos e para educação ambiental.
2.9- Tensão entre o
direito ao desenvolvimento e outros direitos humanos individuais e coletivos,
nomeadamente o direito à autodeterminação, o direito a um ambiente saudável, o
direito à terra e o direito à saúde.
- Para Santos essa
forma de tensão compreende muitas matizes. Mas o autor destaca pelo menos três:
a) tensão relativa ao direito à saúde e aos direitos ambientais em geral; b)
tensão relativa à autodeterminação dos povos; c) tensão relativa ao direitos
dos povos de se libertarem do neocolonialismo.
- O direito ao desenvolvimento passou a ser um
dever ao desenvolvimento, em uma versão neoliberal, onde qualquer alternativa
foi combatida, especialmente o Movimento Nova Ordem Econômica Internacional,
com a imposição de normas pelo Consenso de Washington (garantido pelo FMI,
Banco Mundial e OMC). O auto ressalta que o direito ao desenvolvimento foi
formulado em cima do conceito de troca
desiguais no mercado internacional proposta pela teoria da dependência. Uma
troca desigual condenava os países os países do Terceiro Mundo a exportar
matérias-primas cujos preços eram fixados pelos países que delas precisavam, e
não pelos países que as exportavam. Foi sob esse conceito de desenvolvimento
que países dos Terceiro mundo, especialmente os africanos basearam para
reivindicar um direito ao desenvolvimento como se vê na Declaração sobre o
Progresso Social e o Desenvolvimento (1969), a Declaração do Direito ao
Desenvolvimento das Nações Unidas em 1986.
- No século XXI esse
desenvolvimento apresenta as seguintes características: 1) A reivindicação do
direito ao desenvolvimento se tornou mais complexa; 2) O desenvolvimento
capitalista pressiona os limites dos recursos naturais (mudanças climáticas). A
acumulação das crises torna todas uma única crise, que pode ser chamada de
crise civilizatória, pois tudo está ligado, a crise alimentar, a crise
ambiental, a crise energética, a especulação financeira sobre as commodities, e recursos naturais, a
grilagem e a concentração de terra, a expansão desordenada da fronteira agrícola,
a voracidade da exploração dos recursos naturais, a escassez de água potável e
a privatização da água, etc.; 3) A chegada ao poder de governos progressistas,
que criou condições de melhorias da maioria das populações, com algumas características em comum, apesar de
importantes diferenças. O aumento significativo da classe média brasileira é
apontado como exemplo dessa mudança apoiado em um processo de redistribuição de renda através de
politicas compensatórias de grande dimensão. À essa primeira características
assoma-se a segunda, recuperação da
centralidade do Estado na partilha do excedente econômico criado e na
direção dos parâmetros macroeconômicos e financeiros. No caso da Venezuela e da
Bolívia as regras de repartição do excedente foram tão profundas, que se fala
até em um novo regime de acumulação,
mais nacionalista e estatista, neodesenvolvimentismo,
tendo como base o neoextrativismo.
- O autor destaca os
impactos ambientais que essa forma de desenvolvimento pode trazer, na
deterioração e depleção dos recursos naturais, que são consumidos sempre numa
dimensão da temporalidade curta, sem incorporação de um horizonte temporal mais
dilatado. Dessa forma, a vontade de exercitar a indivisibilidade dos direitos
humanos acaba por gerar uma incompatibilidade entre eles. O incremento dos
direitos econômicos e sócias acaba por vulnerabilizar direito ao meio ambiente e a saúde.
[1] No
fundo, essa questão trazida por Boaventura não é nova, e alguns autores como
Otfried Höffe assinala uma réplica dizendo que universalidade não é
uniformidade.
[2]
Thomas Marshall, Citizenship and Social
Class, 1950.
[3]
Talvez o autor não queira tocar na espinhosa e embaraçosa questão de que historicamente
foram os Estados os maiores violadores desse direitos, especialmente nas
regiões do Estados do socialismo real.